De Corpo e Alma
Uma vez realizado um primeiro ensaio de aproximação entre psiquiatras clínicos e psicanalistas de uma nova referência, percebe-se que os problemas que nos dizem respeito são quase os mesmos e podem ser abordados com simpatia e acolhimento mútuo. Parece que o cérebro não é só aquele órgão que se intoxica com substâncias exógenas, mas também com sua própria “secreção”, a produção de formas e padrões de significação experimentados como ”perturbadores” – para além do sentido pessoal de cada um. Terão eles também um substrato químico? E porque não?
Quando um psicanalista tem êxito em mudar um comportamento, intervindo apenas com palavras e atos, não estará promovendo uma mudança na articulação do pensamento, possibilitando o acesso a memórias inconscientes que teimam em limitar e atrapalhar a plenitude da realização pessoal? E isto não muda as conexões cerebrais? Se pensarmos que é uma terapêutica de desintoxicação que está em jogo, poderemos, se quisermos entender assim, dizer que o sofrimento é uma demanda de mudança que, para ser efetiva, deve modificar, em útima instância o cérebro e suas “secreções” – sejam elas endógenas ou exógenas. Mas se não insisto somente nisto é porque todos sabemos que o ponto de contato do cérebro com o mundo é o comportamento.
Mesmo nas chamadas dependências químicas, se não houver modificação do comportamento, se não prevalecer a abstinência, o psiquiatra não terá sucesso na sua terapia de desintoxicação.
O comportamento humano pode ser comparado à uma fala, articulada em múltiplas dimensões da linguagem, sendo duas delas muito pregnantes: a da linguagem falada – dita verbal – e a da linguagem dos sentidos, das emoções, – dita não verbal – com um significado que expressa desejos e intenções inconscientes sob a forma de afetações. As descrições produzidas por cada corpo teórico-experimental de conhecimento vem gerando abordagens diferentes – cada qual com sua lente – cuja convivência tem sido conflitiva em termos políticos. Mas se todos concordam que a realidade humana é complexa e tem múltiplas vias de abordagem, elas podem se enriquecer mutuamente ao invés de lutar pela hegemonia de uma delas em detrimento da outra. Essa luta pela falsa ideia de conhecimento único é que faz a realidade parecer contraditória. Se aceitarmos, honestamente, que nossos pré-conceitos são oriundos dessa vontade de exclusão, ficamos mais livres para substituir a disciplina pela transa de conhecimentos. Não estaremos com isso enriquecendo o nosso entendimento?
A assunção é a de que há interfaces promissoras, a serem exploradas entre os diversos campos de saber, que têm enriquecido não só a prática – pelo menos no que diz respeito ao aspecto clínico da compreensão dos fenômenos estudados – como também a teoria, acelerando o progresso do conhecimento em cada campo. De tal forma que, ao suspender as fronteiras entre esses campos, eles consigam eliminar falsos problemas, como o assim chamado “problema mente-corpo”. Na aposta de que o campo comum da Clínica possa vir a ser reconhecido e trabalhado por psiquiatras e psicanalistas, visando o questionamento de cada um e o enriquecimento de suas experiências, lembro do artigo de Leon Eisenberg, Psiquiatria sem Cérebro e sem Mente que descreve a situação de mútua exclusão que ainda persiste. Penso nele como uma provocação inicial para a ampliação de nosso diálogo, o que nos permitirá caminhar em direção à um novo paradigma de pensamento, mais pleno e abrangente, como vem pedindo a NOVAmente.
Nívia Bittencourt
¹ EISENBERG, Leon. Psiquiatria sem Cérebro e sem Mente. TEMAS, São Paulo, 1991, 40/41: 82-100.
² Psiquiatra, psicanalista, membro da NOVAmente, doutora pela ECO- UFRJ com a tese “A Vassoura da Bruxa – Lygia Clark na Arte da Lou-Cura”.